Pressões abusivas, com gestos ou palavras, ameaças, constrangimentos e humilhações, que ferem a dignidade da pessoa, causam adoecimento físico e mental e dificultam o convívio no trabalho. Práticas dessa natureza têm sido comuns em muitas comarcas e podem caracterizar assédio moral.
Com frequência, o SERJUSMIG recebe reclamações de servidores que são assediados por superiores ou subordinados (assédio vertical) ou mesmo por colegas no mesmo nível hierárquico (assédio horizontal). Só nos últimos seis meses, o Sindicato tem feito, em média, 10 atendimentos relacionados ao problema por semana.
Uma breve enquete da página do SERJUSMIG no Instagram, entre os dias 4 e 5 de agosto, levantou os seguintes dados:
• Pergunta 1: você já sofreu assédio moral no trabalho? Número de respondentes: 191.
◦ 76% responderam sim
◦ 24% responderam não
• Pergunta 2: você já foi pressionado/a a não fazer valer direitos como férias-prêmio, horário regulamentado, premiações, licença maternidade, licença médica, entre outros? Número de respondentes: 156.
◦ 66% responderam sim
◦ 34% responderam não
• Pergunta 3: você já foi alvo de comentários depreciativos, humilhações, insinuações, rumores ou ameaças vindas de colegas ou superiores hierárquicos? Número de respondentes: 181.
◦ 73% responderam sim
◦ 27% responderam não
• Pergunta 4: você já sentiu vontade de mudar de comarca ou abandonar o emprego, em razão do modo como as pessoas o/a tratavam no ambiente de trabalho? Número de respondentes: 198.
◦ 76% responderam sim
◦ 24% responderam não
Trabalho à distância também tem assédio
A equipe multidisciplinar do SERJUSMIG dedicada a combater o assédio moral relata um fato curioso e, ao mesmo tempo, preocupante. No início da pandemia, com os servidores em home-office, havia uma expectativa de que os casos de assédio moral diminuiriam. Porém, ocorreu o contrário.
“Foi percebida uma intensificação, inclusive do assédio moral horizontal, quando o assediador e o assediado estão no mesmo nível hierárquico”, afirma Raquel Orlando, integrante da equipe e assessora da diretoria do Sindicato. Em muitos casos, segundo ela, o direito de um funcionário migrar para o regime de teletrabalho ou outros direitos, como férias-prêmio, são insistentemente questionados por colegas.
De acordo com a psicóloga Ana Elisa Xavier, que também integra a equipe, o teletrabalho não está imune ao assédio moral que, muitas vezes, leva o trabalhador a uma perda de controle sobre seu próprio tempo de trabalho.
“Quando você sai de casa, às vezes, você tem uma rotina de trabalho de seis horas, organiza o seu tempo para cumprir as demandas dentro daquele horário preestabelecido. Estando em casa, a flexibilidade é maior, mas o consumo de tempo para atividades laborais também pode ser maior, causando desgaste, cansaço”, comenta.
“Eu passo perto do fórum e é como se fosse um cemitério”
Por consequência do assédio, profissionais relatam perda de produtividade, necessidade de afastamento ou mesmo a decisão de trocar a comarca e o local de moradia. Isto ocorreu com AMGC, servidor do Tribunal de Justiça há mais de 30 anos.
“Eu fiquei de licença por quase um ano. Na perícia, chegaram a me perguntar se eu queria me aposentar. Eu disse que não, eu quero ser útil, gostaria de trabalhar. Aí, me deram a opção de escolher outra comarca. Graças a Deus, esse foi o primeiro passo para eu sair do assédio moral”, conta.
AMGC era assediado por meio de comentários depreciativos e repetitivos de um superior acerca da quantidade, qualidade e forma de realizar o serviço. “Quando ele me chamava ao gabinete, eu já ia preparado para tomar um ‘tirambaço’. Então, não havia mais uma linha de diálogo. Outras pessoas observaram uma oportunidade nisso e também atuaram”, reclama o servidor, que coordenava uma equipe e, por vezes, sentiu-se humilhado pelas pessoas que ele comandava.
Da percepção do problema até a mudança de comarca, transcorreu um ano e, nesse meio tempo, AMGC ficou deprimido e ansioso, começou a se alimentar mal, emagreceu, viu o convívio familiar se deteriorar, perdeu a vontade de trabalhar e de viver e acabou sendo afastado por orientação médica. Até que, por fim, resolveu procurar apoio no Sindicato.
“Eu devo muito ao pessoal que me acolheu, Eduardo, Franklin, a doutora Raquel e o Arthur Lobato, que me acompanhou. Eu consegui a minha remoção para outra comarca. Fico longe da minha família a semana inteira, gasto mais com casa, mas não tem dinheiro que pague o quanto estou contemplado. Agora, passo perto do fórum e é como se fosse um cemitério”, relata.
“Nem empresa faz isso”
Durante os 15 anos em que trabalhou em juizados especiais, a servidora CFV teve dois filhos, adoeceu, passou por acompanhamento psicológico, foi trocada de secretaria e começou a tomar remédios controlados, até se afastar do trabalho, por determinação de um psiquiatra. Nesse período, ela sofreu humilhações promovidas, sobretudo, por três escrivães.
“Os primeiros anos foram terríveis. Eu cheguei a ter doença na minha gravidez, seis horas diretas em pé, problemas de inchaço na perna, discussões no balcão porque eu estava grávida. Advogados foram reclamar da minha situação e a juíza me tirou do balcão. Foi uma época horrível, era uma perseguição surreal com o trabalho! A gente fazia um mandado, a vírgula não estava no lugar certo, ela [a escrivã] rasgava. Ela punha um funcionário para fiscalizar o outro”, lembra.
CFV trocou de secretaria, onde teve contato com outra escrivã, que, segundo ela, mostrou uma conduta diferente, respeitosa e construtiva. “Foi a fase em que nós trabalhamos como equipe de verdade, onde eu me senti parte do Tribunal de Justiça. Eu tinha orgulho de pegar meu carro de manhã e entrar no Tribunal”, ressalta.
Porém, a aposentadoria dessa profissional e a chegada de um substituto fez a situação retroceder. A trabalhadora conta que o novo escrivão gritava com os comandados, principalmente mulheres, humilhava funcionários diante dos colegas e fazia comentários maldosos nos corredores. Ela, que planejava se formar em Direito, desistiu, pela influência negativa das pessoas da área que a humilharam. Mas até mesmo isso foi usado contra CFV.
“Ele jogava na minha cara que eu tinha que estudar, sendo que eu já trabalhava há 13 anos lá. Eu não tenho faculdade, mas muitos estagiários que estavam lá aprendiam comigo. Mas, para o meu chefe, não. Isto, inclusive, ele fez questão de colocar nas minhas avaliações”, recorda.
Uma nova mudança de chefia ocorreu e outros abusos vieram, especialmente no período de implantação do Processo Judicial Eletrônico (PJe) e durante a pandemia, com a escala de trabalho presencial. Só que, desta vez, o assédio passou a ocorrer de maneira mais sutil.
A chefe atual não grita, não humilha, não xinga. O que ela faz é obrigar a trabalhar horas a mais, ela faz a regra de horário dela. Eu fazia terapia semanal e ela não concordou em me manter em horário fixo. O servidor não tem uma rotina. A gente não tem vida. Nem empresa faz isso!”, critica.
“Eu vou arrancar você da secretaria”
A psicóloga Ana Elisa Xavier explica que o assédio moral compreende uma série de situações ou atos repetitivos, que causam humilhação, constrangimento, isolamento, menosprezo pelo trabalho e habilidades da outra pessoa, desestabilização.
Após sucessivas vivências, pode ocorrer que a própria pessoa assediada tome para si, como verdadeiras, as avaliações depreciativas que recebeu e, a partir delas, comece a se policiar e retrair. Ela, então, é levada a cobrar de si mesma uma produtividade e excelência definidas pelos outros, a ter medo de se posicionar, a anular-se em função da opinião alheia.
Além disso, existem grupos que estão mais expostos a esse tipo de abordagem do que outros, em função das violências, desigualdades, preconceitos e discriminações que perpassam a sociedade. Esses fatores atingem especialmente pessoas LGBTQIA+, negros, mulheres, pessoas com deficiência, entre outras.
A servidora CFV notou que seus dois processos de gravidez e os de uma colega foram abordados pela equipe de uma secretaria de maneira desrespeitosa. Outra colega, que tinha necessidades especiais, foi assediada pelo gerente. “Ela exercia a função muito bem. Um dia, ela quebrou o pé, fez cirurgia e ficou um ano afastada. O chefe abaixou a avaliação dela”, conta.
Ainda outra profissional, segundo CFV, foi muito perseguida no período em que se tratava de uma depressão. “Eu cansei de ver o chefe gritar com ela. Eu vou arrancar você da secretaria. Não está contente? Pede exoneração!’. Ela chegou ao ponto de querer pedir exoneração mesmo. Só não saiu porque nós conversamos com ela. Eu mesma cheguei a ajudá-la nas tarefas”, recorda.
Avaliação ou perseguição?
A avaliação de desempenho, que deveria fornecer ao trabalhador parâmetros para melhorar sua atuação, muitas vezes, é empregada como instrumento de intimidação, chantagem, ameaça. Servidores que não quiseram ser identificados relatam que, por medo de receberem uma avaliação negativa, prejudicando eventuais tentativas de promoção na carreira, acabaram por aceitar condutas abusivas de superiores.
O vice-presidente do SERJUSMIG, Eduardo Couto, alerta para que a situação pode ficar ainda pior, se a Reforma Administrativa (PEC 32) for aprovada, como pretende o governo federal. “Se a Reforma Administrativa passar, eles podem reformular e redesenhar o instrumento da avaliação de desempenho, voltado para a demissão em massa dos servidores públicos que já possuem estabilidade. Então, ela pode ser utilizada de forma ainda pior. Por isso, é importante lutar contra a PEC 32”, aponta.
“O assédio moral não se combate sozinho”
Ao menor sinal de que está sofrendo assédio moral no ambiente de trabalho, o associado pode entrar em contato com A equipe de acolhimento do SERJUSMIG, pelo telefone: (31) 9 7179-0667. A equipe verificará se há necessidade de acompanhamento psicológico, jurídico ou administrativo, encaminhando o caso para profissional competente.
“Além disso, comece a localizar estratégias, a fim de se resguardar, fazer registros das situações no contexto profissional e perceber como pode sair desse quadro de violência”, acrescenta Ana Elisa Xavier.
A psicóloga também recomenda uma atenção redobrada sobre o auto-cuidado, que o servidor priorize a si mesmo e tente se desvencilhar de conflitos que não vão lhe fazer bem. “É preciso começar a se perguntar: que relações eu quero viver, aquelas que me violam ou relações que me fazem estar bem comigo?”, questiona.
Foi o que fez o servidor AMGC e isto significou para ele um passo importante na direção de seu bem-estar. “Um psicólogo me disse: ‘você tem duas opções, ser feliz ou ter razão. Qual das duas você quer?’. Em 60 dias, consegui a mudança e, hoje, estou feliz, trabalhando”, comemora.
Por fim, ao ver uma pessoa sendo assediada, é importante estabelecer pontes de diálogo. "Se eu consigo perceber que o meu colega está em sofrimento, é importante sinalizar para a pessoa que ela procure saber o que está acontecendo, saber dos seus direitos. O colega pode fortalecer a rede de apoio que está fragilizada. O assédio moral não se combate sozinho”, conclui Ana Elisa Xavier.
Atuação destacada
Nas últimas décadas, o SERJUSMIG tem construído uma trajetória consistente de combate ao assédio moral. A Gerência de Saúde no Trabalho (Gersat) do Tribunal de Justiça de Minas Gerais (TJMG) reconheceu a qualidade desse trabalho. “Inclusive, em alguns momentos, fez uma troca, encaminhando alguns servidores para o acolhimento junto ao SERJUSMIG”, afirma Raquel Orlando.
Em 2007, o Sindicato criou o Plantão de Atendimento às Vítimas de Assédio Moral. Em 2011, graças à luta sindical, foi aprovada na Assembleia Legislativa e sancionada pelo governador de Minas a Lei Complementar 116/2011, sobre a prevenção e punição do assédio moral na Administração Pública estadual, regulamentada em comissão paritária do TJMG. A comissão, composta por magistrados e servidores, conta com a participação do SERJUSMIG.
Em 2016, o Sindicato publicou uma cartilha, com análise de 53 casos de assédio moral, fruto de uma pesquisa conduzida pelo psicólogo Arthur Lobato, especialista no assunto, e a jornalista Taís Ferreira. Em 2017, o Sindicato publicou uma série de artigos sobre o tema, assinados por Arthur Lobato.
Em 2017, a pedido do SERJSUMIG, um grupo de pesquisadores da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) realizou uma pesquisa que deu origem ao livro “Situação de saúde e condições de exercício profissional dos servidores da Primeira Instância do Tribunal de Justiça de Minas Gerais”, das autoras Ada Ávila Assunção, Eduardo de Paula Lima e Bruna de Lima Costa. No livro, é discutido o problema do assédio moral no TJMG.
Em 2019 e 2020, a temática foi debatida em dois seminários sobre a saúde dos trabalhadores, promovidos pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), com efetiva participação do SERJUSMIG.
SERJUSMIG
Unir, Lutar e Vencer
Nenhum comentário:
Postar um comentário