Uma das consequências lamentáveis (mais uma) da pandemia foi o aumento no número de casos de violência contra a mulher.
De acordo com dados do governo federal, foram registrados 105.821 denúncias de violência doméstica no ano de 2020, e os casos de feminicídio aumentaram em 22% em 12 estados durante a pandemia.
Apesar de ter sido criada há 15 anos, a Lei Maria da Penha (Lei nº 11.340/2006), sozinha, não é forte o suficiente para evitar que tantas mulheres sofram violência doméstica.
Diante desse cenário assustador, é papel do Poder Público empenhar-se na busca de soluções efetivas para ajudar a mulher vítima de violência doméstica.
Para isso, mesmo quando não existir previsão em lei, o Estado deve agir em defesa das mulheres.
É nesse sentido que a justiça vem autorizando a remoção de servidoras públicas vítimas de violência doméstica, mesmo quando não há previsão no estatuto do servidor.
No artigo de hoje, eu vou te explicar como funciona o instituto da remoção e como fazer para conseguir uma decisão rápida na justiça em casos de violência doméstica.
O que é remoção?
A remoção é o deslocamento do servidor, a pedido ou de ofício, no âmbito do mesmo quadro, com ou sem mudança de sede.
Esse conceito está expresso no artigo 36 da Lei nº 8.112/90 (Estatuto dos Servidores Federais).
Obs.: a maioria dos Estatutos de Servidores Estaduais e Municipais copiam, na integralidade, o instituto da remoção, previsto na Lei nº 8.112/90
Pois bem.
O texto da lei deixa claro que existem dois tipos de remoção: a pedido ou de ofício.
Na Administração Pública, a regra é que as remoções aconteçam de ofício, ou seja, no interesse único e exclusivo do poder público, pouco importando se a mudança é de interesse do servidor.
Contudo, existem situações excepcionais que autorizam que o servidor público faça o pedido de remoção sem que a Administração Pública possa negá-lo.
Vejamos o que diz o restante do artigo 36 da Lei nº 8.112/90, a respeito da remoção a pedido do servidor público e independentemente do interesse da administração:
Art. 36. Remoção é o deslocamento do servidor, a pedido ou de ofício, no âmbito do mesmo quadro, com ou sem mudança de sede.
Parágrafo único. Para fins do disposto neste artigo, entende-se por modalidades de remoção:
I - de ofício, no interesse da Administração;
II - a pedido, a critério da Administração;
III - a pedido, para outra localidade, independentemente do interesse da Administração:
a) para acompanhar cônjuge ou companheiro, também servidor público civil ou militar, de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, que foi deslocado no interesse da Administração;
b) por motivo de saúde do servidor, cônjuge, companheiro ou dependente que viva às suas expensas e conste do seu assentamento funcional, condicionada à comprovação por junta médica oficial;
c) em virtude de processo seletivo promovido, na hipótese em que o número de interessados for superior ao número de vagas, de acordo com normas preestabelecidas pelo órgão ou entidade em que aqueles estejam lotados.
Percebam que o inciso III deixa claro que a remoção deve ser concedida, independentemente do interesse da Administração, quando for algum dos casos previstos nas alíneas a, b e c.
Porém, não há previsão no estatuto federal (e também na maioria dos estatutos estaduais e municipais) que autorizem a servidora pública, vítima de violência doméstica, a pedir a remoção, e isso tem gerado muita dor de cabeça às mulheres que passam por esse tipo de situação.
Vamos entender o porquê isso acontece e como resolver este problema.
Princípio da Legalidade
A Administração Pública é vinculada a uma série de princípios que estão previstos na Constituição Federal.
Um deles é o Princípio da Legalidade.
Segundo o esse princípio, o servidor público só poderá atuar em conformidade com a lei.
Portanto, todo ato que não possuir embasamento legal, é ilícito.
Por causa desse princípio, muitos órgãos públicos têm negado o direito à remoção a servidoras que são vítimas de violência doméstica.
O argumento utilizado pela administração pública, nesses casos, é que não há previsão legal que autorize o órgão a conceder essa remoção, já que os estatutos, via de regra, não trazem nada a respeito do assunto.
Mas, esse entendimento é equivocado.
Apesar de não estar previsto expressamente nos estatutos, a Lei nº 11.340/2006 (Lei Maria da Penha) traz, em seu artigo 9º, o seguinte:
Art. 9º A assistência à mulher em situação de violência doméstica e familiar será prestada de forma articulada e conforme os princípios e as diretrizes previstos na Lei Orgânica da Assistência Social, no Sistema Único de Saúde, no Sistema Único de Segurança Pública, entre outras normas e políticas públicas de proteção, e emergencialmente quando for o caso.
§ 2º O juiz assegurará à mulher em situação de violência doméstica e familiar, para preservar sua integridade física e psicológica:
I - acesso prioritário à remoção quando servidora pública, integrante da administração direta ou indireta;
Portanto, mesmo não existindo a previsão de remoção por motivo de violência doméstica no estatuto, a Administração Pública pode – e deve – deferir todos os pedidos nesse sentido.
Meu pedido de remoção foi negado administrativamente. O que fazer?
O pedido de remoção deve ser feito dentro da estrutura do órgão ao qual o servidor é vinculado.
Geralmente, cada órgão público já disponibiliza um normativo interno que orienta o passo a passo de como fazer esse pedido internamente.
Inclusive, é importante destacar que boa parte dos órgãos públicos já possuem um formulário padronizado que deve ser preenchido pelo servidor na hora de abrir o processo administrativo de remoção.
Porém, eu acho necessário fazer uma ressalva sobre esses formulários padronizados.
Isso pode ser um fator determinante para que você consiga o deferimento do seu pedido de remoção.
Então, atenção a este ponto!
A maioria das hipóteses que autorizam a remoção do servidor público, independentemente do interesse público, envolvem questões sensíveis.
Muitas vezes são casos complexos, com uma série de detalhes, e um simples formulário padronizado não é capaz de demonstrar isso tudo ao administrador público que irá decidir sobre o pedido.
Portanto, mesmo quando houver o formulário para requerer o pedido de remoção, faça uma minuta detalhando a situação e anexe junto ao pedido padronizado.
Essa estratégia é importante para que a autoridade responsável pela análise do pedido conheça a história de quem está precisando dessa remoção e possa, de alguma forma, se sensibilizar diante da situação.
Afinal, existem vidas que dependem do deferimento daquele pedido de remoção, e quanto antes ele acontecer, melhor.
Contudo, como eu disse mais acima, em muitos casos de violência doméstica o administrador público nega o pedido de remoção da vítima por falta de previsão no estatuto do servidor público.
Nessas situações, a servidora pública terá que pegar o processo administrativo (com a decisão negativa) e entrar com uma ação judicial para conseguir sua remoção.
Nesse ponto, é importante destacar que existe um caráter de extrema urgência no pedido de remoção, já que a vida e a integridade física de uma pessoa está em risco.
Então, o melhor cenário na justiça é conseguir o deferimento desse pedido via liminar.
A liminar é uma decisão rápida, concedida no início do processo, sem a necessidade de ouvir a parte contrária da ação (o ente público).
Para que um juiz conceda o pedido de liminar, é necessário a presença de dois requisitos.
O primeiro deles é a urgência, que, tecnicamente, é previsto na lei como perigo de dano ou o risco ao resultado útil do processo.
Por se tratar de uma questão de risco à vida e à integridade física da mulher, a urgência está clara.
O outro requisito é a probabilidade do direito.
É nesse ponto que algumas pessoas erram e perdem o benefício de conseguir a liminar.
Para demonstrar a probabilidade do direito ao juiz, a servidora precisa comprovar que é vítima de violência doméstica.
E como há o interesse de que seja concedido o pedido por liminar (por ser mais rápido), essas provas têm que estar presentes dentro do processo desde o início da ação.
Então, é muito importante que a mulher, vítima de violência doméstica, produza provas do abuso que está sofrendo para conseguir o deferimento do seu pedido via liminar.
Essas provas podem ser conversas de Whatsapp, e-mails, fotos e vídeos de hematomas e da agressão e boletins de ocorrência.
Também são aceitas testemunhas nesse tipo de processo, porém, como elas só serão ouvidas em audiência, não são úteis para o pedido de liminar.
No caso de provas de Whatsapp, é interessante que, se possível, seja feita uma ata notarial, no cartório, sobre aquelas conversas.
A ata notarial dá fé-pública à prova, comprovando a idoneidade e integralidade do teor da conversa, facilitando na hora do convencimento do juiz.
Comprovada a violência doméstica, a justiça tem deferido os pedidos de remoção por esse motivo.
Vejamos recente decisão do Tribunal Regional Federal da 1ª Região:
ADMINISTRATIVO E CONSTITUCIONAL. MANDADO DE SEGURANÇA. SERVIDOR PÚBLICO FEDERAL. REMOÇÃO. VIOLÊNCIA DOMÉSTICA. ART. 9º, § 2º, I, DA LEI 11.340/06. HIPÓTESE ANÁLOGA À PREVISTA NO ART. 36, III, B DA LEI 8.112/90. PROTEÇÃO À FAMÍLIA. ART. 226, § 8º DA CF/88. SENTENÇA CONCESSIVA. REMESSA OFICIAL NÃO PROVIDA. 1. Sentença que concedeu a segurança para reconhecer o direito à remoção de Professora efetiva na Área de Enfermagem do Instituto Federal da Bahia - IFBA, do campus de Barreiras/BA, para o campus de Salvador/BA, tendo em vista a comprovação nos autos de indícios de violência doméstica sofrida pela parte impetrante. 2. O ato de remoção no caso sub judice terá como fim a preservação do direito à vida, à integridade física, à segurança, ao trabalho e à família. Os bens jurídicos a serem aqui protegidos mostram-se mais importantes do que aqueles tutelados pela Lei nº 8.112/90, que permite a remoção independentemente do interesse da Administração. 3. Com base no princípio constitucional de proteção à família (art. 226, § 8º da CF/88) e no quanto previsto no art. 9º, § 2º, I, da Lei nº 11.340/06, o pedido de remoção da servidora configura hipótese análoga àquela prevista no art. 36, III, b da Lei nº 8.112/90, que trata de pedido de remoção a pedido, para outra localidade, independentemente do interesse da Administração. (TRF-1 - REOMS: 00066861220154013300, Relator: DESEMBARGADORA FEDERAL GILDA SIGMARINGA SEIXAS, Data de Julgamento: 08/03/2017, PRIMEIRA TURMA, Data de Publicação: 20/04/2017)
E se você quiser saber mais sobre a remoção, recomendo a leitura de outro artigo que eu escrevi sobre o assunto. Clique aqui!
Um abraço e até a próxima.
Sérgio Merola
Fonte: Sérgio Merola/JUS Brasil
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