segunda-feira, 14 de março de 2022

Mundo do trabalho perde Guida Barreto, pioneira nas pesquisas e na luta contra o assédio moral

 

Faleceu em 3/3, aos 76 anos, a médica Margarida Maria Silveira Barreto, referência latinoamericana nas pesquisas sobre a prática do assédio moral nas relações de trabalho. Ela enfrentava um câncer quando contraiu Covid-19, o que agravou seu estado de saúde. A morte de Guida Barreto, como era conhecida, comoveu o mundo do trabalho e provocou moções de consternação de associações de pesquisa e de entidades sindicais.

Guida e amigas em visita a escola de Havana, em 2017

Na medicina, Guida atuou inicialmente como ginecologista, obstetra e cirurgiã geral. “Tinha muita habilidade, era uma excelente cirurgiã”, relata ao Informativo Adusp seu amigo e grande companheiro de pesquisas José Roberto Heloani, professor da Unicamp. Foi uma tragédia pessoal — a perda de Carla, sua filha única pré-adolescente — que a levou a optar pela medicina do trabalho (deixando de lado a obstetrícia e as cirurgias) e, mais tarde, a enveredar na investigação do assédio laboral.

Ela trabalhou o tema no mestrado e depois no doutorado em Psicologia Social, ambos cursados na Pontifícia Universidade Católica (PUC-SP), sob orientação do professor Bader Burnhan Sawaia. “Assédio moral. A violência sutil. Análise epidemiológica e psicossocial no trabalho no Brasil” é o título de sua tese, defendida em 2005.

Guida foi docente da Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de São Paulo e do programa de pós-graduação em Psicologia Social da PUC-SP, bem como pesquisadora associada do Núcleo de Estudos Psicossociais e Dialética Exclusão/Inclusão Social da PUC-SP (Nexin). Sempre colaborou intensamente com outros(as) pesquisadores(as), em especial o professor Heloani, com quem escreveu Assédio Moral no Trabalho (Cencage, 2008), que tem ainda como coautora Maria Ester de Freitas.

“O grande mérito da publicação reside na abordagem do assédio moral no trabalho como problema fundamentalmente social e organizacional, intrinsecamente relacionado às mudanças do sistema produtivo, contrapondo-se, assim, às compreensões psicologizantes, patologizantes e a-históricas, frequentemente presentes nas discussões de temas co-relacionados, tal como as do bullying escolar e do stress”, anotou, em resenha do livro, o professor Eduardo Pinto e Silva, da Universidade Federal de São Carlos.

“Sendo assim”, diz mais adiante o resenhista, Guida, Heloani e Maria Ester “apresentam importante definição do conceito de assédio moral, tanto do ponto de vista epistemológico quanto político: ‘O assédio moral é uma conduta abusiva, intencional, freqüente e repetida, que ocorre no ambiente de trabalho e que visa diminuir, humilhar, vexar, constranger, desqualificar e demolir psiquicamente um indivíduo ou um grupo, degradando as suas condições de trabalho, atingindo sua dignidade e colocando em risco a sua integridade pessoal e profissional’”.

Abrastt, ABET e entidades sindicais expressam pesar

A Associação Brasileira de Saúde do Trabalhador e Trabalhadora (Abrastt) emitiu nota de pesar lembrando que Guida “foi a precursora em pesquisas relacionadas a assédio moral e sexual no trabalho no país” e que integrou, como diretora financeira adjunta, a gestão 2020-2021 da entidade. “Suas pesquisas abordam temas como violência e saúde mental no trabalho. Seu legado para a área da saúde do trabalhador é de extrema importância pois aborda os aspectos psicossociais relacionados ao trabalho. Sua luta em defesa da saúde dos trabalhadores e trabalhadores nos motiva a continuar”.

Também a Associação Brasileira de Estudos do Trabalho (ABET) divulgou nota de profundo pesar frente ao falecimento de Guida. “Médica, professora e pesquisadora, Margarida foi pioneira nos estudos sobre assédio moral e sexual no país, tendo dedicado sua trajetória às questões da saúde no trabalho, em especial à saúde mental e à violência no trabalho”, assinalou. A ABET destacou ainda que Guida deixa “um legado de pesquisas, de luta e de um convívio fraterno e generoso com aqueles que a cercaram”.

Sindicatos e centrais sindicais expressaram sua tristeza, destacando o ativismo de Guida e seu engajamento nas atividades de diversas categorias. Um dos muitos sindicatos com os quais ela colaborou foi a Adusp, ao participar como expositora de um dos “saraus” promovidos à época, no qual abordou as questões do assédio moral e do produtivismo acadêmico. Na ocasião foi lançada a edição 48 da Revista Adusp (setembro de 2010), cuja reportagem de capa versava sobre a Síndrome de Burnout, associada a ambos os temas. Guida foi uma das principais fontes da matéria.

“O modelo baseado nas regras de mercado gera grande diputa e indiferença entre os pares. A competitividade se dá entre professores, que começam a se questionar por quanto tempo mais aguentarão; questionam sua capacidade profissional”, disse a pesquisadora à jornalista Marina Pita, autora da reportagem. “Passamos a encontrar altos níveis de fadiga mental e física em professores, inclusive ideações suicidas e depressões severas. Há uma série de adoecimentos que têm início como hipertensão, alteração gastrintestinal, insônia”, explicou.

No entender de Guida, os casos de assédio moral devem ser entendidos como de natureza estrutural ou institucional. “Mesmo quando se identifica o indivíduo em casos de assédio moral, não o vejo como único responsável. Uma lógica anterior é a verdadeira causa: a lógica de resultados, da quantidade em detrimento da qualidade”, sustentou. O assediador ou assediadora nem sempre percebe que assedia moralmente, porque a lógica foi internalizada e ele crê fazer o melhor para a universidade. “Há uma direção da própria lógica do modelo toyotista de organização do trabalho para isso. O indivíduo acha que está dando o melhor de si, está mostrando serviço. Não é consciente, é algo terrivelmente internalizado”, apontava.

“Começamos a visualizar o assédio a partir de seus ensinamentos”, diz a cubana Lydia Guevara

“Eu a conheci em 2001, por referências, e já em 2002 começamos uma amizade que nunca terminou, porque os laços de união foram e continuarão sendo fortes”, contou ao Informativo Adusp a jurista cubana Lydia Guevara Ramírez. “Ela organizou o 1º Congresso Internacional sobre Assédio e  Violência no Brasil e em Pernambuco, com a presença de representantes de Argentina, Chile, Uruguai, Cuba e Brasil, e todas lhe seguimos os passos. Pesquisamos, publicamos e começamos a visualizar a violência e o assédio a partir de seus ensinamentos”.

Mestra em direito do trabalho e secretária de Mulher e Gênero da Associação Latinoamericana de Advogados Trabalhistas, Lydia destaca o papel de Guida na realização das seis primeiras edições do Congresso Iberoamericano Sobre Violência Laboral e Institucional e, paralelamente, na constituição da Rede Iberoamericana pela Dignidade das Pessoas no Trabalho e nas Organizações.

“Eu tinha informações e participava de um coletivo de pesquisadores desde 1998, porém o nível de apreciação desses temas por parte de Guida Barreto superou as expectativas que eu tinha e me ajudou a consolidar meus conhecimentos”, revelou Lydia. “Estivemos juntas em cursos em universidades de vários países, em Fóruns Sociais Mundiais e da América Latina, e sobretudo redobramos os esforços para realizar reuniões com os sindicatos, porque nossos destinatários preferenciais foram e serão os trabalhadores e trabalhadoras que devem contar com um meio ambiente laboral livre de violências”.

A pesquisadora brasileira, recorda Lydia, foi uma das fundadoras da Rede Iberoamericana pela Dignidade das Pessoas no Trabalho e nas Organizações, criada no 1º Congresso Iberoamericano sobre Violência Laboral e Institucional, realizado na Cidade do México em 2011. O 6º Congresso, sediado em Manágua (Nicarágua), ocorreu durante a pandemia, em novembro de 2021, e por isso foi virtual.

“Quando soube por meus outros companheiros e companheiras brasileiras da gravidade de seu estado de saúde, acordamos que o 6º Congresso seria dedicado a Margarida Barreto, que apesar de suas dores agudas e mal-estar se desdobrou como imaginávamos e soube fazer uma conferência de abertura que se guarda para a história por sua qualidade e conteúdo. Quando da guerra de independência de Cuba contra a Espanha, José Martí disse: ‘A morte não é verdade quando se cumpriu bem a obra da vida’. Guida Barreto, presente!”

“Não fosse ela, talvez ainda estivéssemos achando que assédio moral é simplesmente pessoal”

Durante o velório do corpo de Guida, realizado em 4/3, o professor Heloani proferiu um marcante discurso, no qual descreveu a trajetória muito singular e a firmeza de caráter de sua amiga. “A gente está muito acostumado a dar palestras, dar aula. Mas ninguém está preparado para perder uma vida como a da Margarida Barreto. Duvido que alguém esteja preparado”, disse, emocionado. “Eu perdi uma parceira intelectual de vinte e cinco anos, perdi uma irmã, perdi uma grande amiga, talvez a maior que eu tive. Por outro lado eu sou grato, por ter tido durante mais de vinte e cinco anos uma pessoa com a qualidade dela”.

Nós temos que ser gratos a ela, continuou, “porque foi uma excelente médica e porque foi uma militante com ternura”. Ele destacou a história de militância de Guida: “Foi uma militante com tal convicção de que é possível melhorar a sociedade, com tal garra, e ao mesmo tempo com tanto carinho, que se não fosse ela talvez nos sindicatos nós ainda estivéssemos achando que assédio moral é uma questão simplesmente pessoal”.

Enfatizou também a firmeza de Guida no enfrentamento com uma grande empresa que teve seus interesses contrariados por denúncias de assédio moral, feitas por ela e seu grupo de pesquisa. “Quantas vezes ela mostrou que era uma pessoa excepcionalmente honesta, de uma honestidade ímpar, incomum. Confesso a vocês que uma grande multinacional, aliás nacional, talvez a maior, mediante o advogado-chefe, tentou nos comprar, dando um telefonema para ela e dizendo ‘Quanto vocês querem para fazer um congresso sobre assédio moral? Nós bancamos tudo, tudo, vocês não precisam apresentar nenhuma nota’. Sabe o que ela falou? Não posso falar, não cai bem. Quando [o advogado-chefe] se referiu à minha pessoa, ela disse: ‘Você pode ligar, ele vai falar a mesma coisa’. Esta era a Margarida”. 

A seu ver, Guida “valorizava e cobrava a lealdade, as amizades, a família e com certeza me ensinou a ser leal com os trabalhadores”. “Essa foi a maior lição que ela nos deu. Ser leal aos trabalhadores em todos os momentos, os bons, os maus, e com todos que precisam de força, de ânimo”.

Ao Informativo Adusp, Heloani considera que a amiga “foi generosa até na morte”, porque, ao perceber que seu estado se agravava, decidiu internar-se num hospital de cuidados paliativos, poupando assim de maiores sofrimentos os parentes e amigos que se revezavam para lhe dar assistência em casa. “Ela foi uma heroína até o último momento. E morreu serena”.

 

https://www.adusp.org.br/index.php/universidade-defesa/469-assedido-moral/4420-guida-barr

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