sexta-feira, 4 de abril de 2014

ENTREVISTA com Margarida Maria Silveira Barreto


EXTRA CLASSE Outubro/2012

Especialista em Medicina do Trabalho e doutora em Psicologia Social pela PUC-SP, Margarida Maria Silveira Barreto está entre os especialistas da área médica precursores no estudo sobre assédio moral no trabalho e efeitos das jornadas extensas sobre a saúde de trabalhadores. Suas pesquisas jogaram luz sobre a realidade vivida tanto por executivos quanto por operários em rotinas de desgaste físico e emocional, sob o abuso de poder por parte de empregadores, situações relatadas no livro Violência, saúde e trabalho – uma jornada de humilhações (Educ/Fapesp). Escrito a partir da retórica discursiva de trabalhadores sobre saúde, doença e trabalho, a obra instiga reflexões sobre a “inclusão pela exclusão”. Segundo Margarida Barreto, a organização do trabalho, as políticas de gestão e as extensas jornadas de trabalho – que atingem todas as profissões no país – favorecem condutas assediadoras e abuso de poder que desencadeiam o adoecimento de trabalhadores, a fragmentação e o esvaziamento de sentido do trabalho, a violação da dignidade e a flexibilização de direitos. “As jornadas extenuantes e a pressão por metas revelam a arqueologia do adoecer, isto é, uma condição em que o ser humano não é considerado e que traz prejuízos para todos, inclusive para as empresas e a Previdência”, alerta a médica nesta entrevista.

Jornada de humilhações



Por Gilson Camargo

Extra Classe – Ao alertar sobre as consequências das jornadas de trabalho excessivas e da pressão por produtividade, a senhora refere-se à arqueologia do adoecer. Quais são os danos causados aos trabalhadores por essa lógica do sistema produtivo?
Margarida Barreto – A exigência de jornadas extenuantes e pressão contínua por maior produção é o que revela a arqueologia do adoecer. É uma condição em que o ser humano desaparece, dando lugar ao ser-máquina, que não pode enfermar, não pode faltar à empresa, que deve, a cada segundo, superar as metas. Também poderíamos afirmar que, no período histórico atual, a grande arte no mundo do trabalho está centrada na fragmentação do trabalhador, na constante violação da dignidade e na flexibilização dos direitos, na precarização das condições de trabalho, desestruturação das formas de sociabilidade e abuso de poder.
EC – A violação do direito ao descanso inter- fere na saúde e na vida familiar dos trabalhadores? Margarida – O trabalho mudou e mudaram as técnicas e, mesmo sem fazer um diagnóstico primoroso da essência do meio ambiente do trabalho e das relações laborais, não se pode deixar de mencionar o culto à banalização do sofrimento e naturalização das exigências que se expressam nas humilhações e desqualificações cotidianas. Essas passaram a fazer parte de um modo singular de administrar e organizar o trabalho, potencializando o que chamávamos de novo modo taylorista de administrar. Hoje, o tempo de trabalho está intensificado, não há espaços para que o trabalhador possa descansar das múltiplas tarefas que realiza. Essa gestão desumana com intensificação do ritmo de trabalho causa sérias consequências para os trabalhadores e trabalhadoras, atingindo a sua família e interferindo nas
formas de adoecer e morrer.
EC – Afetam também a produtividade das empresas? De que forma?
Margarida – Sim, a política da onipotência e onipresença da produtividade é o “tudo” das empresas. O que mais elas desejam é aumentar a sua produção e, consequentemente, seus lucros. Para isso, lutam para aumentar a visibilidade no mercado com uma imagem de responsabilidade social, de boas práticas e defesa do verde. Esse é o discurso que não corresponde à prática no intramuros. É na linha do tempo de cada organização que aparecem os traços típicos daquilo que são: demitem aos primeiros sinais de adoecimento, retardam ao máximo o retorno ao trabalho daqueles que estiveram afastados por doença e retornaram após receber alta da Previdência. Omitem doenças e acidentes e não admitem, mesmo que de forma velada, mulheres que engravidam no primeiro ano de empresa. Censuram cipeiros e dirigentes sindicais, dificultando ou impedindo suas atividades. Tentam impor aos dirigentes a necessidade de priorizar o “sentar à mesa e negociar”, cooptando-os como colaboradores do capital, tentando neutralizar conflitos e divergências entre as classes.
EC – Uma lógica que inclui a pacificação e a juvenilização nas empresas...
Margarida – Quando fazem as reestruturações, essas empresas demitem os mais velhos e os que recebem altos salários ou até mesmo aqueles que criticam as jornadas exaustivas e as exigências sem limites. É o momento da “limpeza” daqueles que “falam muito” e instauração de um novo enten- dimento e aceitação da organização. Vivemos uma época em que o grande trabalhador é aquele que sempre excede e ultrapassa as metas impostas e que não adoece. São os novos guerreiros da produção. E, por isso, há a exaltação do discurso fálico para aqueles que ultrapassam as metas e não faltam. O trabalhador sadio é exaltado, é um “macho bravo”, que não adoece, que não questiona e se ajusta às normas. Em contrapartida, há uma estratégia de eliminar os adoecidos, os questionadores, os que cobram a patologia do banco de horas e criticam a participação parcial nos lucros. Não é exagero dizer- mos que o ambiente de trabalho que todos vivem é de um constante culto à produção e imperativo do lucro máximo. Todos estão submetidos ao culto da competitividade, das práticas individualizadas e egoístas, o que não deixa tempo para tecer laços de amizade e muito menos ajuda mútua, no grupo so- cial. Não há entusiasmo, confiança, respeito mútuo, reconhecimento no grupo, pois todos devem vigiar o trabalho do outro, encarar um ao outro como um potencial inimigo. São fatores que favorecem o ado- ecer, dão lugar ao desânimo no coletivo, à fadiga e a transtornos, ao aumento de acidentes e diminuição da produtividade.
EC – O adoecimento devido à jornada esten- dida tem reflexos na Previdência?
Margarida – Sim. A empresa é responsável pelo pagamento dos primeiros 15 dias de afastamento do trabalhador. A partir do 16º, é a Previdência. Se você me perguntar qual a fotografia que temos do mundo do trabalho em pleno século 21, te falaria dos números oficiais. Eles nos revelam que entre 2008 e 2010 houve o registro de 2,3 milhões de acidentes do trabalho, com a morte de 8.089 trabalhadores, isto é, quase uma morte por acidente de trabalho a cada 3 horas. Desse total, 41.798 trabalhadores ficaram permanentemente incapacitados para o trabalho. Imagine uma pessoa que sofreu um acidente, que adoeceu em consequência do trabalho, que desencadeou um transtorno mental ou fadiga intensa, de tanto trabalhar. Não dá para você prever quantos dias esse trabalhador vai necessitar permanecer afastado de suas atividades, quando terá condições para retornar ao trabalho. O custo é muito alto. E se o retorno culmina com a demissão, por exemplo, essa pessoa poderá, após alguns meses de desemprego, desenvolver outras doenças como hipertensão, depressão e até mesmo ideações suicidas.

‘‘...entre 2008 e 2010 houve o registro de 2,3 milhões de acidentes do trabalho, com a morte de 8.089 trabalhadores, isto é, quase uma morte por acidente de trabalho a cada 3 horas. Desse total, 41.798 trabalhadores ficaram permanentemente incapacitadospara o trabalho’’

EC – O aumento do número de postos de trabalho formais e do rendimento real representam avanços na direção do pleno emprego? A qualidade dessas vagas está em discussão?
Margarida – É necessário termos um pouco de cuidado ao falarmos em pleno emprego. Deveríamos refletir e perguntar que tipo de emprego? Precarizados? Terceirizados? Subempregos? Temporários? Trabalho informal ou em tempo parcial? De empregos que exigem pouca qualificação, o que justifica pagar menos e explorar mais? Do emprego que valoriza as coisas e desvaloriza os homens? Da disseminação do trabalho que adoece e mata? São modalidades que provocam insegurança tanto na manutenção do emprego como na renda, que é sempre menos ante um trabalho que exige muito e, ainda por cima, é pouco valorizado socialmente. Vivemos transformações intensas e profundas no mundo do trabalho, cuja marcas são as re-estruturações e flexibilizações do processo produtivo ao lado de intensas desregulamentações, precarização social e do trabalho que se juntam às demissões massivas. Quem fica, fica sobrecarregado, tendo que enfrentar e internalizar o discurso no qual o futuro da empre- sa é o seu futuro, o seu sucesso.

EC – Ou seja, o custo do pleno emprego é alto e quem paga são os trabalhadores...
Margarida – Sim, pois trabalhar em condições precarizadas, sobrecarregados de tarefas, coisificados, alienados do seu próprio sofrimento, por não se reconhecerem no trabalho que realizam não pode ser motivo de prazer e saúde. Ao contrário, na medida em que acentua a falta de sentido do trabalho, que favorece o “despertencimento social” ou a exclusão cada vez maior dos trabalhadores formais. São dimensões que favorecem o aparecimento dos “déspotas de si mesmos” ante um clima de exacerbação da banalização das injustiças. Não vamos esquecer que há degradação da condição salarial, há jovens sem trabalho, há diminuição de oferta de trabalho para os que ultrapassaram os 50 anos de idade e, contraditoriamente, com alto nível de escolaridade e qualificação profissional. O novo, hoje, é que se demite com uma facilidade espantosa, independentemente de colocar-se contra a legislação ainda vigente.
EC – Como os empregadores justificam as jornadas de trabalho excessivas?
Margarida – Usam o batido argumento das dificuldades, da possibilidade de fechar a empresa ou mudar de região, da necessidade de oxigenar e enxugar gastos. São ameaças que rondam o cotidiano dos trabalhadores, como metáforas e fofocas que desestabilizam e facilitam a adesão de todos às mudanças, mesmo que essas signifiquem maior dedicação e, consequentemente, maior autossacrifício em nome da produtividade; ou maior índice de adoecimentos por concentração de tarefas. E o contexto da crise mundial é providencial, pois os ajuda a justificar suas práticas de diminuição de despesas mesmo quando a concentração da riqueza continua em mãos de poucos.
EC – De que forma a precarização esvazia de sentido o trabalho?
Margarida – Sabemos que o homem compõe a sua existência tendo como base os pilares da afetividade nos variados e diversificados encontros que constrói durante sua vida no trabalho. Essa di- mensão é fundamental, mesmo quando reconhecemos que os pilares afetivos nem sempre estarão ancorados em afetividade ética e daí as infinitas composições da vida. É no trabalho que você vive grande parte do seu dia e ali a composição ética entre os corpos daqueles que-vivem-do-trabalho, de- pende direta ou indiretamente das ideias criativas, da autonomia, do saber-fazer, do reconhecimento daquilo que faz, do respeito mútuo. Esses aspectos sustentam os afetos de solidariedade, permitindo bons encontros no coletivo. Quando esse ambiente é flexibilizado e precarizado, dominado por pres- sões e humilhações, exigências de metas e violações constantes, o que resta? Um homem fragmentado, dividido, sujeitado.
EC – O que é legal e aceitável e o que pode ser considerado excessivo em termos de jornada de trabalho?
Margarida – Todo ser humano necessita descansar, dormir e repor as energias, vivenciar a família e acompanhar o crescimento dos filhos. Deve ter tempo para lazer. Quando a jornada excede as 8 horas diárias, que já são muito se consideramos o avanço tecnológico, se torna inaceitável e imoral, pois representa uma exploração imposta ao corpo e à mente dos trabalhadores e trabalhadoras, que leva mais precocemente aos adoecimentos. A Organização Internacional do Trabalho (OIT) e a Organização Mundial da Saúde (OMS) defendem o trabalho seguro e decente. E aqui não se pode falar minimamente em decência dos empregadores ante um novo ideário político neoliberal de livre comércio que prima pela menor presença do Estado com poder regulador das relações entre capital e trabalho. Somos um país em que apesar das subnotificações, tem um altíssimo índice de acidentes, doenças e morte em consequência do trabalho, e adoecer ou morrer do trabalho é perverso e indecente. O trabalho fere, adoece e mata cotidianamente centenas de trabalhadores e trabalhadoras em nosso país. É só olharmos as estatísticas oficiais. Por isso, a OIT chama a atenção para as mudanças na organização do trabalho associadas ao avanço tecnológico nos locais de trabalho, o que tem contribuído de forma decisiva para o surgimento de novos riscos no ambiente laboral. Esses avanços acarretam novas consequências à saúde e à segurança do trabalhador. Deste modo, os novos riscos convivem lado a lado com os velhos e estão concentrados em três categorias: as novas tecnologias e processos de produção, advindos como, por exemplo, com a nanotecnologia, a biotecnologia; as novas condições de trabalho, ou seja, as jornadas prolongadas, a intensificação do trabalho, o aumento do setor informal etc. E, por último, as novas formas de emprego, como o emprego independente, parcial, em casa, a subcontratação, os contratos temporários e tantas outras formas de contrato.

‘‘ Muitas vezes a política adotada pelas empresas tem sido de fuga ou até mesmo de culpabilizar o corpo técnico. É uma forma perversa de lidar com a vida humana, menosprezando aqueles que produzem riquezas ’’

EC – Quais são as profissões mais expostas ao abuso de poder por parte do empregador?
Margarida – Sem dúvidas as profissões relacionadas ao setor da Saúde, da Educação, Comunicação e Serviços. Não há setor que explore menos ou mais. Há formas de degradação das relações e condições de trabalho que são mais caóticas, desumanas como, por exemplo, o trabalho infantil, o trabalho escravo, o trabalho dos imigrantes, e até diria o trabalho dos negros e deficientes, regados frequentemente com práticas discriminatórias e atos racistas.
EC – No caso dos professores, as novas tecnologias estenderam ainda mais o trabalho extra- classe...
Margarida – Os professores não ficaram isentos das transformações que ocorreram na sociedade e, em especial, na educação. Essa profissão lida com valores, com afetos e emoções e seu foco está centrado no ser humano, informação e formação do outro. Portanto, sua prática está permeada pelo cuidar, administrar e também zelar pela formação e preparação. Como lidar com valores de competição, quando você deve formar o jovem para o mercado que aí está e ensinar-lhe que seja “um vitorioso sobre os outros”, sem se importar com o sofrimento que pode causar? Como lidar com essas demandas que lhes são impostas como as jornadas prolongadas, exaustivas, a falta de reconhecimento e o pouco tempo para estudar e aprimorar seus próprios conhecimentos? A pressão da organização é grande, o que gera conflitos internos, sofrimento que pode desencadear ou ser consequência dos transtornos e adoecimentos. Para dar conta da demanda, muitas vezes tornam-se subservientes por necessitar do emprego ou mesmo se calam como estratégia defensiva, como forma de aguentar o insuportável. É uma condição que pode levar à perda de identidade, desprazer, na medida em que as exigências aumentam e as condições de trabalho regridem, alterando a relação do docente com alunos, colegas e sua família. O professor está submetido à lógica perversa do produtivismo acadêmico, que ao invés de alavancar o desejo, o prazer e o conhecimento, o emperra, levando ao fracasso de uma política que se baseou na eficácia quantitativa e monetária, que acumula fortunas e não conhecimentos.
EC – Qual a relação entre condições de trabalho e adoecimento de professores?
Margarida – Há um grande estudo da década de 90, realizado por pesquisadores da Universidade de Brasília, que aponta a Síndrome de burnout como dominante entre professores. Em 2010, participaram da pesquisa 1.821 professores. Nos resultados e análises dos dados fica evidenciada a relação entre adoecimento e condições de trabalho, ou seja, 63,2% dos pesquisados referiram jornadas prolongadas e extenuantes. Os sintomas mais comuns continuavam sendo cansaço, nervosismo, perda de voz, fadiga/cansaço, dores de cabeça etc.
EC – Por que o descaso com a saúde do trabalhador deve ser visto como ‘homicídio culposo’? Margarida – É dever dos empregadores garantir um ambiente de trabalho sadio, sem riscos ou com os riscos controlados e que não exponha os trabalhadores a doenças e mortes. Na medida em que o empregador prioriza as medidas de proteção individual e não interfere nas condições de trabalho, ele é responsável. E mais, toda empresa possui técnicos capazes de assinalar os riscos, os possíveis danos a que estão expostos os trabalhadores. Apontam sugestões e propõem medidas, mas falta a eles autonomia para fazer. Quando ocorre um agravo ou morte que poderia ter sido evitada, o empregador deve ser responsabilizado por sua omissão. Muitas vezes a política adotada pelas empresas tem sido de fuga ou até mesmo de culpabilizar o corpo técnico. É uma forma perversa de lidar com a vida humana, menosprezando aqueles que produzem riquezas. 




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